É em uma baixada da cidade, num cruzamento perigoso que une as avenidas Bairro Verde e 31 de Março, bem na altura da travessa Marajó, onde, desnudado, resplandece de todos os seus pudores e se descortina para os ingratos piracicabanos que, em nome de um frigido progresso, o recobrir
am, não permitindo que aflorasse toda sua formosura. Esse é o triste destino do córrego Itapeva!
Sim, se você não sabia, existe um ribeirão que flui despercebido no subterrâneo de Piracicaba. Esse riozinho nasce numa região baixa e escorre a céu aberto pelo logradouro de fatídico nome, cuja data tem mais destaque que suas águas que escoam até o Teatro Dr. Losso Netto, quando se torna, definitivamente, oculto por ter sido canalizado e inicia sua sinistra jornada por debaixo da avenida Armando de Salles Oliveira, por cerca de três quilômetros, serpenteando imperceptível a região central da geografia municipal, delimitando parte do centro com os bairros Alto e São Dimas, até desaguar no Rio Piracicaba, próximo à Ponte Irmãos Rebouças.
Com a justificativa de um avanço civilizatório, econômico e tecnológico, argumentos esses que desconsideraram a sustentabilidade, e apenas visavam trazer mais mobilidade e espaço para os carros trafegarem, o riacho foi canalizado e recoberto com massa asfáltica para dar lugar à avenida que foi batizada como nome de um ex-governador de São Paulo, que havia falecido em 1945.
A bacia do córrego Itapeva tem uma área de drenagem de 788 hectares, portanto a execução da obra foi ousada, tendo se iniciado em 1948 com o prefeito Luiz Dias Gonzaga, atravessando a gestão de Samuel de Castro Neves, que continuou a empreita, e finalmente concluída em 1960, durante o governo de Luciano Guidotti.
Passando despercebido por motoristas e transeuntes, invisível, ou apenas esquecido, fato é que o Itapeva só é lembrado quando acontecem as tradicionais chuvas de verão, trazendo as costumeiras enchentes que assolam toda a região que vai do teatro municipal ao terminal de ônibus rodoviário, escancarando os erros que os governantes cometeram ao canalizarem esse ribeirão e que talvez seja o principal motivo das inundações de casas e ruas dessa parte da cidade, que poderiam ter sido evitadas.
“Essa tentativa de acomodar pedestres e automóveis fez com que os rios fossem canalizados para pessoas e carros melhor conviverem. Contudo, a natureza acaba sempre cobrando o seu preço, que vem, na maioria das vezes, na forma de enchentes, causando prejuízos e atingindo a população mais frágil”, afirmou Paula Cardoso, engenheira ambiental e consultora na Geoblue Brasil Soluções Ambientais.
A Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana, Trânsito e Transportes (Semuttran) de Piracicaba estima que, diariamente, circulam pela Armando de Salles Oliveira cerca de 43 mil veículos. A avenida possui, aproximadamente, três mil metros no sentido centro, que é o lado mais fiel ao trajeto do córrego, já que a avenida passou por alargamentos e reformas ao longo dos anos.
No sentido bairro, a extensão é menor, de apenas 1.800 metros, mas o que conta mesmo são os carros que trafegam por cima da via, guiados por desatentos motoristas que pouco ou nada sabem sobre o que está por debaixo daquela serpente asfáltica.
Especialista em águas subterrâneas e superficiais, Paula acredita que não há como reverter a obra que canalizou o riacho, mas aponta medidas mitigatórias, aliviando assim o impacto social e econômico. “Hoje é praticamente impossível reverter a canalização. O que dá para se fazer são projetos de mitigação como a renaturalização do curso d’água, que é um processo de recuperação de rios degradados, devolvendo-lhes as condições mais próximas das origens naturais”, propõe.
Rios Des.Cobertos
Há pouca informação sobre o maltratado córrego como, por exemplo, onde ele nasce exatamente e quais cursos de água contribuem para sua formação. Com incontáveis afluentes, que são os córregos, riachos e outros mananciais menores que se lançam em sua calha, contribuindo para o seu volume e fluxo, os pequenos rios que deságuam no Itapeva e que funcionam como veias capilares de uma micro bacia hidrográfica, são desconhecidos, mas têm o poder de influenciar na quantidade e na qualidade de suas águas hoje poluídas, mas que acabam escorrendo para o rio principal também.
Em 2018, o projeto Rios Des.Cobertos produziu um estudo sobre os rios e nascentes que correm por baixo das ruas de Piracicaba informando e apresentando, de forma visual, por meio de uma maquete, parte dos rios e cursos d’água da cidade que não tinham nomes e nem registros nos bancos de dados da prefeitura. A revelação gerou uma ação voluntária junto a uma escola para resgatar o nome de alguns rios do perímetro urbano, em uma iniciativa que muito contribuiu para a conscientização da população sobre a existência desses cursos d’água, fomentando atividades de preservação e limpeza dos rios.
“O projeto foi apresentado no Sesc e tinha a proposta de resgatar os nomes populares dos rios que hoje foram canalizados e enterrados, ou mesmo aqueles que ainda estão a céu aberto nas bordas da cidade, mas que perderam seus nomes populares e ganharam códigos de canais de drenagem que vêm junto com o trabalho de engenharia”, informou Charlie Oliveira integrante do projeto Rios Descobertos – A cidade de Piracicaba e o rio Tiete do Estúdio Laborg.
O Itapeva é um riacho de valor sentimental e inestimável para os piracicabanos mais velhos que ainda se lembram de quando era visível, onde as pessoas nadavam e pescavam. Agora, oculto, recebe uma grande carga de dejetos de esgotos da grande explosão urbanística que se deu às suas margens.
“O Itapeva era um córrego que nos anos de 1920 tinha cascudos, lambaris e piquiras. Na pontinha da rua Riachuelo havia uma comporta. Toda a água que vinha do córrego e também da mina do Olho da Nhá Rita, junto ao leito da Sorocabana, era ali retida. Quando atingia o limite, abria-se a comporta e a água levava toda a sujeira até à Ponte Velha, no Rio Piracicaba. Todas as ruas do Bairro Alto, até a Saldanha Marinho, tinham pontinhas. Na que ficava à rua Moraes Barros havia uma biquinha e a água era salobra”, escreveu Cecílio Elias Netto no jornal impresso ‘A Província’ em setembro de 1987.
Por dentro do Itapeva
Em 2022, técnicos da Mirante, concessionária responsável pela gestão do sistema de esgotamento sanitário do município de Piracicaba, com o apoio de profissionais especializados, realizaram uma vistoria no Itapeva, para tentar identificar possíveis lançamentos irregulares de esgoto no manancial.
Foram percorridos 3 km de extensão da calha principal do córrego, desde o Teatro Municipal até o local onde desemboca o córrego, no Rio Piracicaba. O procedimento de verificação de despejo irregular de esgoto faz parte da rotina de trabalho dos técnicos, noticiou a empresa na época.
Ativistas ambientais
Apesar do manancial seguir correndo pelos subterrâneos da cidade e sofrer com as descargas de esgotos devido expansão demográfica e urbanística que se deu às suas margens, ainda existem pessoa que se preocupam com ele.
No início de agosto, Thiago Diniz Barne Ganeo, adentrou com seu caiaque no ribeirão Itapeva pela manilha localizada ao lado da Ponte Irmãos Rebouças. Munido de uma câmera, o canoísta permaneceu por 20 minutos no local onde filmou e fotografou a quantidade de esgoto que era visível exatamente no ponto em que o córrego deságua.
“Foi um gesto de protesto para mostrar a quantidade de esgoto despejado no rio Piracicaba, proveniente do Itapeva. Isso acontece há anos e ninguém fala nada, receio que um dia nosso rio fique igual ao Tietê, na cidade de São Paulo”, afirmou Ganeo. “A quantidade de esgoto me surpreendeu, ainda mais porque as autoridades sempre dizem que a cidade possui 100% de seus afluentes domésticos tratados”, completou o canoísta profissional que rema há 26 anos pelas águas do rio que corta a municipalidade piracicabana.
Aqui passa um rio
Em uma outra forma de ativismo ambiental, o cartunista Erasmo Spadotto faz desenhos com giz em alguns pontos da avenida Armando de Salles Oliveira informando os desavisados que ali existe um curso d´água.
“É uma intervenção urbana que serve como um alerta para deixar avisado que existe um córrego bem debaixo de nossos pés. Dessa forma, expresso aqui, por meio da minha arte, um Itapeva visível”, disse o artista gráfico enquanto desenhava. “Afinal, poucos sabem e por isso alertamos: aqui passa um Rio!”, completou apontando para baixo.
Porém, soluções para resolver os problemas do Itapeva vão além de iniciativas de ativistas e defensores das águas que se empenham em fazer vir à tona as informações sobre as mazelas do regato esquecido.
“Com a preservação das nascentes, o restauro das margens onde o córrego não é coberto, a retirada das espécies invasoras do leito e a plantação de árvores nativas, sem esquecer do poder público e dos órgãos fiscalizadoras, com mais atenção dos governantes e das agências Cetesb e DAEE, estações de tratamento compactas, localizadas dentro do bairro, poderiam contribuir muito com os cursos d’água subterrâneos”, finalizou Paula.
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Marcelo Basso